terça-feira, 23 de novembro de 2010

Direitos Tolhidos

Quando os hospitais e postos de saúde fecham suas portas é na Justiça que os pacientes buscam socorro.

Hospitais lotados, falta de médicos, pacientes atendidos nos corredores. Pelo Brasil, falar disso é “sofrer no molhado”. Mas o desespero, às vezes tem limite. Limite de tempo.

O processo anuncia em manchete que o caso é de risco de morte. Em São Paulo, o menino Weslley tem 6 anos e uma doença neurológica gravíssima. Ele precisa de um remédio americano que custa R$ 36 mil por mês. A Justiça mandou o governo pagar. A família ganhou, mas ainda não levou.

“Mas até agora nada. Um sofrimento, mais luta ainda”, contou a mãe de Weslley, Flávia Rodrigues.

No Rio de Janeiro, Débora sofre de esclerose múltipla, uma doença terrível. O caso dela não se trata de cura, mas de amenizar tanto sofrimento. Remédios mais novos, mais caros, podem ajudar.

“Fomos à doutora, aí ela falou: ‘Vamos mudar, vamos experimentar esse novo medicamento’. Aí, eu fui ao hospital com o pedido da doutora, mas não quiseram internar, disseram que não tinha vaga”, conta a mãe de Débora, Célia Telles.

“Estou piorando. Eu estou sentindo que estou”, explica a paciente Débora Telles.

A família não tem alternativa e contrata um advogado. Débora não consegue nem assinar o documento. Começa outra peregrinação, por outros corredores. Um vai e vem para tentar na Justiça resolver um problema de saúde. A advogada finalmente tem uma boa noticia: “Consegui, consegui o processo! Agora eu vou tirar cópia da decisão e vou tentar a internação”, contou a advogada Vânia Sampaio.

A cada hora, a cada dia a situação de Débora piora. A família volta ao hospital para tentar a internação pelas vias normais. Não funciona. Agora é com a advogada.

“Teve uma decisão judicial para ela ser internada e eu queria ver se a gente consegue resolver”, disse a advogada à responsável pelo hospital, que informou que iria passar o caso para o jurídico. O hospital é obrigado a se curvar ao mandato, mas informa que não possui o medicamento de que Débora precisa.

Hoje, existem no país cerca de 112 mil processos na Justiça buscando internações, remédios, procedimentos cirúrgicos. Quase 45 mil só no estado de São Paulo.

Essa semana, um fórum do Conselho Nacional de Justiça reuniu profissionais das duas áreas para debater o problema. A Justiça faz bem a saúde? O diagnóstico é claro: um lado precisa da ajuda do outro.

“Nossa ideia é criar comitês técnicos em todos estados, a exemplo do Rio de Janeiro”, explica Nelson Tomaz Braga, do Conselho Nacional de Justiça.

O volume de ações cresce e exige decisões em pouco tempo. O Tribunal de Justiça do Rio foi pioneiro e inspirou outros estados quando o seu presidente, o desembargador Luiz Zveiter, criou um núcleo de profissionais da área de saúde para dar aos juízes um parecer técnico com rapidez.

“Antigamente, o juiz tinha que se limitar ao seu bom senso. Chegava um pedido com uma afirmativa de um médico particular que precisava de um remédio, de determinado insumo, precisaria de uma internação para poder salvar a vida. E entre a morte e a vida, o juiz optava pela vida, óbvio. Então, os deferimentos, as liminares, eram em grande número. Hoje, com o Núcleo de Assessoramento Técnico, onde há médicos, farmacêuticos, em um convênio que foi feito com a Secretaria do Estado, o juiz pode se valer dessa experiência dos técnicos para poder decidir com maior profundidade e com maior tranquilidade. Esse núcleo tem sido de muita valia, porque o juiz não decide só no bom senso entre a vida e a morte. Ele também tem um parecer técnico”, explica Luiz Zveiter.

Mesmo com essa ajuda, as limitações dos juízes para entender complexas questões médicas são inegáveis. E existe até o risco de abusos. Por exemplo: alguém usar a Justiça para furar a fila e ser atendido antes.

“Isso pode acontecer e acredito que até aconteça de fato. Todavia, é o que eu digo: o limite da decisão está na documentação carreada ao processo, que as partes trazem para instruir o pedido delas e, eventualmente, algum esclarecimento, a gente pede. Se esse esclarecimento vier dizendo que aquilo deve ser feito, a gente não tem como dizer que não, porque está em risco a vida de uma pessoa”, justifica a juíza de Direito Mônica Ferreira.

Um juiz, naturalmente, procura proteger algo cuja perda é irreparável: a vida. Em casos de internação em UTIs, Unidades de Tratamento Intensivo, a diferença entre viver ou morrer se mede em minutos. E aí, a Justiça é inevitavelmente lenta.

“Se chega à UTI uma internação por via judicial, certamente esse paciente já perdeu o momento adequado da sua internação. A maioria das doenças que são tratadas dentro da UTI, o seu desfecho está diretamente relacionado com a rapidez em que esse atendimento é oferecido. E outro lado importante: quando não há disponibilidade de leitos, não adianta ter uma liminar que o médico não vai conseguir fazer que esse leito surja do nada”, explica Ederlon Rezende, da Associação de Medicina Intensiva.

Atrasar uma solução tem um custo muito alto. No Rio de Janeiro, um casal hoje sofre a ausência do filho. Fabio morreu em agosto. Durante seis meses, mesmo com decisão judicial favorável, o menino de 14 anos não recebeu um aparelho que pudesse ajudá-lo a respirar e que custava R$ 520 por mês.

“Para mim, não vai ter Natal. Ele adorava churrasco”, contou o pai, Antônio Nascimento. “Ele era o festeiro da casa. Ano passado, ele se divertiu tanto, a gente não sabia que era o último. Natal, esse ano pra gente, não vai ter”, lembrou a mãe de Fábio.

Em Sinop, cidade de Mato Grosso, uma mãe, arrasada, chorava a morte do filho de 13 anos. Foi em julho. “Se eu tivesse condição, como isso é muito caro, importado, eu não tinha condições de comprar, senão eu comprava”, justifica a mãe de Matheus, Márcia Regina.

O medicamento suíço custava R$ 28 mil. Por dois anos e meio, o governo deu o tratamento para Matheus. Mas quando parou de pagar, em menos de dois meses o garoto de 13 anos morreu. “Ficamos de mãos atadas diante da falta do medicamento, não tem o que fazer, esse valor”, falou Márcia.

A mãe de Mateus tocou em um ponto crítico: uma vida não tem preço, mas tudo na área de saúde tem. E muita coisa é extremamente cara.

De acordo com o Ministério da Saúde, o crescente uso da Justiça traz ainda um outro risco: para se privilegiar o pagamento do remédio de alguns vai se tirar da verba de muitos outros. “Nós gastamos quase R$100 milhões em 2009. Em 2010, já gastamos R$ 128 milhões. Esse é um dinheiro que não está programado para gastar com o cumprimento de demanda judicial e é um dinheiro que você tira de áreas que já estavam planejadas”, afirmou José do Nascimento Júnior, do Ministério da Saúde.

A gauchinha Anita tem 3 aninhos. É uma graça. Mas tem uma doença rara que a obriga a se alimentar com uma espécie de leite especial. “O valor do medicamento daria R$ 3 mil por mês. Cada lata é R$ 975 e ela utiliza quatro latas por mês”, reclamou a mãe de Anita, Patrícia de Angelis.

São na verdade R$ 3.900 por mês. A família pediu na Justiça a compra do que era, na prática, a comida de Anita. Nada. Uma juíza fez de tudo, mas não cumpriam a decisão dela. Nessa hora teve que ser corajosa: se viu obrigada a mandar prender um procurador da União.

“Chegou um momento que eu, como juíza, me vi nessa situação de estar com as mãos amarradas. Eu tenho uma decisão proferida, é um caso de vida ou morte, que ainda por cima envolve uma criança e eu não estou conseguindo fazer cumprir essa decisão. Então, essa foi uma situação muito séria, e quero deixar bem claro que em momento algum eu tive a intenção cometer qualquer afronta institucional”, justificou a juíza de Direito Ana Inês Latorre.

De R$ 36 mil até R$ 520, podendo ser menos, podendo ser mais. Qual o limite para o pagamento, para o orçamento de um país na área de saúde? O que é saudável? O que é justo ? Essas são, para médicos e para juízes, decisões difíceis.

“Antes de ser um direito nosso manter nosso filho, é um direito dela de estar viva”, resumiu Patrícia de Angelis, mãe de Anita.

Fonte: Fantástico - Rede Globo

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